“É preciso um controle externo do Judiciário; é preciso saber como funciona a caixa preta desse poder que se considera intocável”, disse o então presidente Lula, com voz inflamada, em uma solenidade no Espírito Santo, em 2003.
Estava em tramitação no Congresso a chamada Reforma do Judiciário, que, entre outras mudanças, previa a instituição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo do Poder Judiciário. A declaração de Lula mexeu com os brios dos magistrados, que já estavam descontentes e se movimentando contra a implementação do Conselho.
Ele acrescentou: “Este país precisa voltar a recuperar o sentido da Justiça para todos e a autoestima. As instituições foram feitas para servir às pessoas, não se servir das pessoas”.
O que ele quis dizer com “as instituições foram feitas para servir às pessoas” é outra história. Na verdade, por “caixa preta” fazia-se referência à falta de transparência do Poder Judiciário, suas práticas administrativas, quantidade de processos, agilidade (ou falta dela), além da má vontade de atuação de seus órgãos de controle sobre as falhas de seus próprios membros.
Pesava, também, a falta de divulgação à sociedade da verba pública aplicada na Justiça. Havia um forte desejo de se combater o corporativismo presente em muitos tribunais, melhorar o gerenciamento dos seus recursos e trocar experiências entre eles, visando ao aumento da eficiência.
O fato é que a chamada Reforma do Judiciário foi aprovada pelo Congresso em 31 de dezembro de 2004, por meio da Emenda Constitucional n. 45. Foi ela que instituiu o Conselho Nacional de Justiça, que teria quinze membros, sendo nove oriundos da magistratura, dois do Ministério Público, dois da advocacia, um representante da Câmara dos Deputados e um do Senado Federal.
Instituído, o CNJ tinha por função “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” e, entre outras atribuições, “receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário”, podendo “determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas”.
Não havia dúvida: as mudanças operavam uma verdadeira revolução. Pela primeira vez na história republicana brasileira os juízes teriam um controle externo.
Antes mesmo da mudança, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) questionou a constitucionalidade do CNJ por meio da Ação Direta de Constitucionalidade 3367/2005, mas perdeu. Membros da AMB, inclusive, recusaram-se a indicar nomes para preencher as vagas reservadas aos juízes na composição do Conselho. Aos trancos e barrancos, contudo, em junho de 2005 o CNJ foi instalado.
A verdade é que, muito mais do que um órgão fiscalizador, o novo Conselho pretendia dinamizar o Poder Judiciário, trabalhando por sua transparência, eficiência e celeridade. Acreditava-se que, uma vez vencidas as resistências dos juízes e conquistada a confiança da sociedade, o CNJ se solidificaria como um instrumento a favor da democracia.
Ele partiu do zero, com boa dose de entusiasmo e idealismo de seus primeiros integrantes, que acreditavam estar construindo algo muito importante para o Brasil. Foi necessário requisitar espaço para a sua instalação, assim como servidores de outros órgãos, nomeados provisoriamente em cargos comissionados e também terceirizados. Somente em novembro de 2012 seria promovido concurso público para o provimento de postos vagos de analista judiciário e técnico judiciário.
Vencidas as etapas de estruturação, a entidade realizou programas notáveis, como o Cadastro Nacional de Adoção, a Jornada de Trabalhos sobre a Lei Maria da Penha e o projeto Começar de Novo.
Outra grande realização foi o relatório Justiça em Números, com a previsão estatística de gastos e produtividade dos tribunais. Essa iniciativa também gerou resistência dos magistrados, por ter revelado muitas deficiências quanto à prestação jurisdicional no Brasil.
É claro que o órgão mexeu em vespeiros. O primeiro deles foi a proibição do nepotismo no Poder Judiciário. Em seguida, obrigou os tribunais a respeitarem o teto salarial constitucional, provocando reações virulentas de desembargadores. Uma das mais notórias veio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que em março de 2006 circulou um manifesto denominado Denúncia e conclamação. Ao aprovarem o documento, os membros do seu Tribunal Pleno decidiram organizar uma paralisação dos trabalhos e uma advertência, afirmando que o CNJ era um “órgão concebido e instituído por um parlamento debilitado pela corrupção, capitaneado pelo Sr. Nelson Jobim com poderes ilimitados, com um comportamento ditatorial a serviço do reino, que, irresponsavelmente, legisla por meio de resoluções”. Toda essa celeuma porque, como lembrou o próprio Nelson Jobim, o CNJ quis obrigar o Tribunal a respeitar o teto salarial constitucional.
O fato é que os tribunais haviam criado uma série de vantagens pecuniárias não autorizadas por lei e, agora, esperneavam porque eram obrigados a recolocar as coisas no devido lugar.
Porém, sem dúvida, a maior mudança veio com a atuação da Corregedoria, que recebeu e julgou centenas de reclamações feitas por cidadãos contra juízes e desembargadores. Eram situações de corrupção, injustiças, desmandos ou pura incompetência. Mais de cinquenta magistrados foram afastados após os devidos processos disciplinares.
A polêmica continuava. Em setembro de 2011 a ministra Eliana Calmon, corregedora-geral de Justiça à época, disse que havia um “gravíssimo problema de infiltração de bandidos na Justiça, escondidos atrás da toga”. Ela fez esse comentário diante das reclamações para reduzir os poderes do CNJ de investigar juízes suspeitos de corrupção. A declaração gerou mal-estar, como era previsto, provocando inclusive reação do então presidente do STF e do CNJ, ministro Cezar Peluso. Mas a ministra esclareceu que se dirigia a uma minoria, e não à totalidade dos magistrados.
Ela se envolveu em outros embates. Um dos mais ruidosos foi a decisão de investigar indícios de irregularidades no Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país. “Entendi que era preciso calçar as botas de soldado alemão e fazer inspeção, mesmo que eles não quisessem”, justificou-se. Eliana Calmon foi acusada de quebrar ilegalmente o sigilo de milhares de pessoas ligadas ao tribunal, mas isso não ficou provado.
Enquanto isso, a AMB, que já havia questionado a constitucionalidade do CNJ, voltou à carga com a ADI 4638/2012, insurgindo-se contra a competência da Corregedoria Nacional de Justiça. Perdeu novamente. No julgamento da ADI 4638, o Supremo decidiu que o CNJ deve julgar qualquer reclamação efetuada contra membros do Poder Judiciário. A única exceção é o próprio STF e seus ministros.
Mas o futuro do CNJ parece sombrio diante da hipótese de aprovação da nova Lei Orgânica da Magistratura, cujo texto coloca o órgão como o último a integrar o Poder Judiciário e exige, para a aplicação das sanções disciplinares, que elas sejam aprovadas por maioria absoluta, o que deixa a função unicamente nas mãos dos juízes, pois, dos quinze conselheiros, nove são magistrados.
Além disso, no procedimento regulado pelo projeto de lei, o CNJ figura como órgão recursal, tendo limitada inclusive a sua competência avocatória (quando o órgão chama para si o julgamento disciplinar de membros da magistratura e dos tribunais).
Será esse o começo do fim?